quinta-feira, 4 de agosto de 2011

De Passagem

Aqui em Washington DC faz calor! No meio do mormaço eu tento resolver pepinos, estudar, ler por prazer e escrever algo que valha. Saudades do Brasil, de amig@s, de Dona Joana e Sô Jão. Assim caminha a humanidade. Andei fuçando nos inBLÓGios que gosto de ler habitualmente descobri que boa parte das pessoas não tem escrito: falta tempo, deve rolar desânimo e, vez ou outra, ausência de assunto para ser publicado, eu acho. Muita gente também simplesmente desistiu de escrever. Pena. Mas nessas horas dou uma olhada nos textos antigos d@s meus/minhas trutas e sempre encontro umas pérolas que não tenho a mínima cara de pau de roubar para exibir por aqui.
 
Pois bem, a assaltada de hoje então é a minha amiga Katia Costa-Santos que possue o inBLÓGio WebNeguinha  Já falei da moça por aqui ano passado quando ela lançou o seu livro que retrata a vida da cantora Dona Ivone Lara (leia meu post AQUI).  Hoje li um trecho traduzido por ela de um clássico da literatura afro-americana e que ela postou no inBLÓGio dela há um bom tempo atrás. A propósito, foi um dos primeiros posts dela. Okay, sem mais delongas leiam a parada logo abaixo. O texto reflete sobre o processo conhecido nos EUA como passing na qual uma pessoa negra possuidora de fenótipos brancos decide mudar de lado em termos raciais (entendeu o porquê da foto acima agora?). Ah, ia esquecendo: sista Katia é PhD em literatura por uma universidade norte-americana e mora atualmente no Rio de Janeiro.

Obrigado Katia!

Beijos do Márcio/Kibe. 

Saturday, November 13, 2004

De Passagem


Esta é uma tradução minha do texto original, Passing, extraído do livro The Ways of White Folks, lançado pela primeira vez em 1934, do renomado poeta e escritor Langston Hughes [foto ao lado], um dos principais personagens do movimento historicamente conhecido como Harlem Renaissance (Renascença Negra do Harlem) promovido pelos Afro-Americanos.

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De Passagem
Langston Hughes (1902-1967)

Chicago,
Domingo, 10 de Outubro.

Querida Mãe,

Me senti um cachorro, por passar pela senhora na cidade, na noite passada, e não falar. Mas a senhora, no entanto, foi demais. Não deu o menor sinal de que me conhecia, e muito menos de que eu era seu filho. Se eu não estivesse com a minha garota, Mãe, nós poderíamos ter nos falado. Eu já não temo tanto, como antes, que alguém pense que eu sou uma pessoa de cor só por me verem conversando com um Negro na rua. Apesar do que, acho que na aparência eu estou acima de qualquer suspeita. Lembra como era difícil para mim, na escola, convencer os professores de que eu na verdade era de cor? Às vezes mesmo depois de conhecerem a senhora, minha mãe, eles ainda assim não acreditavam. Acho que eles pensavam que eu apenas tinha uma mãe mulata. Desde que comecei a me passar por branco, ninguém jamais duvidou de que eu fosse um homem branco. Aonde eu trabalho, o chefe é do Sul e sempre fala mal dos Negros na minha presença, e nem sonha que eu também seja. Dá vontade de rir!

O engraçado, Mãe, é como alguns brancos não gostam mesmo de pessoas de cor, não é? (Se não fosse assim, eu não precisaria passar por branco para preservar o meu bom emprego.) Às vezes eles perdem a linha falando coisas ruins sobre as pessoas de cor, espalhando que somos todos ladrões e mentirosos, ou temos doenças – tuberculose, sífilis e coisas assim. Sem se importarem com o fato de que ao espalharem essas propagandas falsas por aí fica mais difícil para um homem Negro conseguir um bom emprego. Eu não sabia que eles costumavam falar essas coisas terríveis de nós, até eu começar a passar por branco, ouvir as conversas deles, e conviver com eles.

Mas eu não me importo de ser “branco”, Mãe, e foi generoso da sua parte me encorajar a ir em frente e me valer da minha pele clara, e do meu cabelo bom. Isso me ajudou a conseguir este trabalho, Mãe, onde ganho 65 dolares por semana, apesar da crise. E estou para ser promovido a secretário chefe, caso o Sr. Weeks vá para Washington. Quando olho para o porteiro, um rapaz de cor, que também varre a portaria, eu acho que é isto que eu estaria fazendo se a minha pele não fosse clara o bastante para escapar dessa. Não importa o quão inteligente esse rapaz seja, eles não o admitiriam como escriturário, não se soubessem. Apenas como porteiro. É por isso que às vezes eu tenho o maior prazer em dizer uns dasaforos para o chefe, que nem imagina que tem um secretário de cor.

Mas, Mãe, me senti muito mal na noite passada. Foi a primeira vez que nos encontramos em público nessa situação. É o tipo de coisa que torna difícil essa situação de passar por branco. Ter que renegar os própios familiares quando os vê. Claro, sei que a senhora e eu compreendemos que essa é a melhor opção, mas mesmo assim é terrível. Eu te amo, Mãe, e odeio fazer isso, mesmo que a senhora diga que não se importa.

Mas o que a senhora achou da garota que estava comigo, Mãe? É com ela que eu vou me casar. Muito bonitinha, não é? Bem disposta. Os pais têm uma situação estável. A família dela é alemã-americana, e também não têm muito preconceito em relação aos negros. Semana passada eu a levei para assistir a um tetro de revista de gente de cor e ela adorou. Ela disse, “as pessoas escuras são muito graciosas e alegres”. Imagina, o que ela teria dito se eu tivesse contado para ela que eu era de cor, ou meio-de-cor – e que o meu pai era branco, mas que a senhora não era? Mas acho que não vou mexer com isso. Já que eu decidi que vou viver no mundo dos brancos, onde já consegui conquistar o meu espaço (um bom espaço), para que continuar pensando em raça? Ainda bem que não preciso mais pensar nisso, eu já sei o bastante.

Espero que o Charlie e a Gladys não me levem a mal. É engraçado apenas eu, entre os filhos, ter saído claro o bastante para conseguir passar por branco. Charlie é até mais escuro que a senhora, Mãe. Eu sei que na escola ele ficava meio chateado quando os professores pensavam que eu era branco, antes de saberem que nós éramos irmãos. Eu também me sentia mal com isso. Mas agora estou feliz por a senhora ter me apoiado, ter me dito para ir em frente e conquistar na vida tudo o que eu puder. E é isso que vou fazer, Mãe. Vou me casar com uma branca e viver como branco, e se algum dos meus filhos nascer escuro eu juro que não é meu. Nunca mais serei pego pela cor. Não eu. Estou livre Mãe, livre!

Bom mesmo seria se eu pudesse sair de Chicago, fosse transferido para o escritório de Nova Iorque, ou de São Francisco – algum lugar onde o que aconteceu ontem à noite jamais acontecesse de novo. Foi horrível passar pela senhora e não falar. Se fosse a Gladys ou o Charlie que passassem por mim na rua, talvez não tivessem a mesma descrição da senhora – porque eles não parecem muito satisfeitos com o fato de eu estar me passando por branco. Mas eu não vejo o por quê. Eu não estou fazendo nada contra eles, e mando dinheiro para a senhora toda semana e ajudo tanto quanto eles, ou mais. Mãe, diga a eles para não me hostilizarem caso esbarrem comigo e com a minha namorada por aí. Talvez tivesse sido melhor que a senhora e eles dois tivessem ficado em Cincinnati e eu tivesse vindo sozinho quando decidimos nos mudar, depois da morte do velho. Ou pelo menos, deveríamos ter ido para cidades diferentes, não é?

Meu Deus, Mãe, quando eu lembro que o pai deixou tudo para a família branca dele, e que legalmente a senhora não pôde fazer nada pelos filhos, meu sangue ferve. Eu sei que a senhora não teria a menor chance num tribunal de Kentucky, mas se a senhora tivesse pelo menos tentado, os filhos brancos dele poderiam ter dado um cala-a-boca qualquer a senhora. Acho que eles não iam querer que se espalhasse por aí que eles têm irmãos de cor. A senhora foi orgulhosa demais, Mãe, num foi? Eu nao teria sido tão orgulhoso.

Bem, ele comprou uma casa para a senhora e colocou todos nós na faculdade. Ainda bem que eu terminei a faculdade em Pittsburgh antes da morte dele. Pena que o Charlie e a Gladys tiveram que trancar, mas eu espero que Charlie consiga algo melhor para fazer do que trabalhar em uma garagem. E pelo que a senhora me disse sobre a Gladys na última carta, a senhora tem razão de estar preocupada com ela – querer fazer parte do coro de um daqueles cabarés do Sul. Meu Deus! Mas sei que realmente está difícil para as moças conseguirem qualquer tipo de trabalho nesses tempos de crise, principalmente moças de cor, até mesmo a Gladys, que é mulata bem clara, e inteligente. Mas espero que a senhora consiga segurá-la em casa, e longe daqueles chiqueiros do Sul. Aquilo não é lugar para uma moça decente.

Bem, Mãe, fico por aqui porque prometi levar minha perdição ao cinema hoje à noite. Ela não é Linda de se ver, bem loirinha de olhos azuis? Estamos fazendo planos para a nossa casa para quando nos casarmos. Vamos morar em um pequeno apartamento na Zona Norte, em um bom bairro, lá naquelas agradáveis e tranqüilas ruas arborizadas. Eu vou manter uma caixa postal nos correios para as suas correspondências. Felizmente não há nada que impeça as cartas de cruzarem as fronteiras raciais. Mesmo que não possamos nos encontrar com freqüência, podemos nos escrever, não é, Mãe?

Com amor, do seu filho,

Jack.